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Solidão à terceira margem

“Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.” ¹

A obra de Guimarães Rosa, além de ser objeto da análise literária, é também alvo de estudos psicanalíticos, sobretudo seus contos. O conto “A Terceira Margem do Rio”, entre outras análises, comporta a percepção acerca da angústia de separação do narrador pela partida do pai e suas consequências.² Além de possibilitar leituras sobre outras questões, como culpa, ressentimento e castração, o conto tangencia também a solidão, sendo esse o ponto do escrutínio e que compreende também uma análise a concernindo.


No conto seguimos a narração do personagem do filho, é ele quem conta a história de seu pai, personagem que certo dia resolve mandar construir uma canoa só para si e, sob incompreensões e dúvidas, vai embora sozinho para o grande rio. O narrador-filho explicita a dinâmica das relações familiares, como a assertividade da mãe e o silêncio do pai — silêncio esse que diz em seu “não dizer” -, o que torna a decisão de ir para o rio um acontecimento singular e espantoso.


A solidão tem sua primeira aparição no trecho em que o pai “decide um adeus” para a família. O narrador se aproxima do pai, em um movimento distinto do restante da família, e pergunta se ele o levaria junto na canoa. O pai em silêncio dá a benção ao menino e gesticula para que ele voltasse para trás. O homem deve ir sozinho nessa canoa. O fato apontado no segundo parágrafo do conto, de que a canoa era pequena, “como para caber justo o remador”, fortalece o entendimento de que essa tarefa é de somente um indivíduo.


O que corre no conto, a partir disso, são as reações a esse estranho evento, é também a partir daí que se começa a perceber o que resta na margem e o que resta no rio. A descrição se dá por uma sucessão de fatos que acontecem na margem, com aqueles que ficam, pelo olhar do narrador.


É apresentado o revolvimento de uma realidade prática que incide no contingente do acontecimento tão inusitado. São os familiares, as notícias, as instituições que vêm averiguar o que se passou. Também são questões táteis as expostas pelo narrador quando refere-se ao pai. A margem é o local de segurança, da realidade prática, onde se pisa em terra firma, das certezas cabais. É da margem que correm os boatos, que se desconcerta diante da partida do pai, que deve procurar rearranjos no cotidiano.



Como o narrador permanece na margem pouco se diz sobre o rio, adjetivado no início do conto como “grande, fundo, calado que sempre”, sendo posteriormente referido também como “o ermo”, contribuindo para a compreensão de um local incerto e misterioso, turvo. Aquilo que resta no rio, portanto, é a “nenhuma parte” descrita no texto, lugar que não existe, onde não se sabe sobre a realidade substancial da existência do pai, como sua alimentação ou paradeiro. Sua existência é posta em suspensão. Também por isso uma interpretação cabível é a de perceber o rio como o evento da morte.³


Percebe-se a solidão novamente ao final do conto, quando o filho, já velho, grita ao pai propondo que agora eles trocassem de lugar, o pai voltaria para a margem e o filho ocuparia o seu lugar na canoa. No entanto, quando o pai acena, aceitando e vindo em direção à margem, o filho amedrontado, foge do pai carregando consigo a culpa pelo “falimento”. Fica ainda mais evidente que a ida para o rio é uma tarefa única, pessoal, e que é uma jornada que deve ser vivida por cada um.


Ir para o meio do rio é ir para longe dos pontos seguros da exatidão e do discernimento, onde prossegue o viver sem cautela e a vontade encontra vazão, onde se encontra também a suscetibilidade. A leitura da solidão deve acontecer não como distanciamento da vida prática, ou das ditas distrações do mundo, como se dessa maneira fosse possível alcançar uma acuidade de sentido nas coisas e ações, mas de um posicionamento nesse local de suscetibilidade, de balanço, que escolhe a realidade singular da canoa que vaga pelo rio profundo à realidade prática das certezas coletivas ou institucionais.


Ser a terceira margem do rio é abrir mão da busca por margens, por solos firmes e amparos irredutíveis. É se lançar, com a certeza de canoa, da dureza de sua madeira, em meio ao “rio adentro, rio afora”, é ter demarcado a aceitação do sofrimento, que certo é infinito, mas não perene.


 

notas


¹ ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: Ficção completa: volume II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 409

² PERRONE-MOYSES, Leyla. Para trás da serra do mim. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 210–217, 1º sem. 2002

³ ROSENBAUM, Yudith. Guimarães Rosa: a terceira margem do rio | Yudith Rosembaum. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=82IAeFHc9Pc&t=3s>. Acesso em: 14 ago. 2018.

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