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A bordo do El Durazno

*texto escrito no contexto do curso Projeto Expográfico, de Helena Cavalheiro, do Platô Studio e editado para publicação.

Grupo de trabalho formado por Amanda Câmara Lima, Laura Trimer e Victor Ferraz.


“Lina em Diálogo” foi a proposta curatorial apresentada por Pollyana Quintella para o exercício proposto no curso Projeto Expográfico: do plano à prática. A exposição hipotética pretendia abarcar o percurso da arquiteta italiana Lina Bo Bardi no Brasil, não de um ponto de vista cronológico, mas recuperando, em diversos momentos de sua trajetória, o vocabulário imagético que ela construiu, também contados através de outros artistas. Daí, então, o diálogo.


Da proposta apresentada, a palavra que mais reverberou foi “cotemporalidade”, seguida por outras, como “acúmulo”, “sobreposição” e “emaranhar”. Essas se tornaram as diretrizes para buscar conceitos que acompanhassem a narrativa curatorial, reafirmando-a e produzindo novas leituras. Assim, ao longo de mais de 100 trabalhos, a exposição deveria ocupar um dos galpões do Sesc Pompeia, projeto de Lina e que é, nele mesmo, um emaranhado de diferentes tempos.


A exposição, durante seu período imaginário em cartaz, seria esse espaço que comportaria uma variedade de momentos que cada obras trás, uma verdadeira justaposição de temporalidades que se comunicam por si e entre si, bem como se comunicam com o espaço. Michel Foucault em seu texto “De outros espaços” (1967), fruto de uma conferência, nos apresenta às heterotopias, “espécies de utopias realizadas” e seu equivalente ao tempo, as “heterocronias”. Através de diversos exemplos, Foucault constrói o que são as heterotopias e, por vezes, às classifica, como o faz com o museu, segundo ele, “heterotopias nas quais o tempo não cessa de se amontoar e de se sobrepor a si mesmo”.


Em contrapartida à ideia de acumulo de tempo dos museus, ele nos traz a ideia de uma heterotopia ligada a um período de tempo mais fugaz:


“há heterotopias que estão ligadas, ao contrário, ao tempo no que ele tem de mais fútil, de mais passageiro, de mais precário, e isso no modo de festa. São heterotopias não mais orientadas para o eterno, mas absolutamente crônicas. Assim são as feiras, essas maravilhosas alocações vazias nos limites das cidades, que se povoam, uma ou duas vezes por ano, de barracas, de estandes, de objetos heteróclitos, de lutadores, de mulheres-serpente, de videntes.”

Criar um espaço e um momento no tempo que permita a sobreposição concomitante de outros espaços, temporalidades e, consequentemente, leituras é, em certa medida, suspender o “tempo linear”, desejos trazidos pela proposta curatorial, e flutuar entre épocas. Não por acaso, ele encerra sua apresentação destacando:


“o navio é a heterotopia por excelência. Em civilizações sem barcos, esgotam-se os sonhos, e a aventura é substituída pela espionagem, os piratas pelas polícias.”

É nítida a associação que Foucault faz das heterotopias com elementos imaginários, que aguçam a curiosidade, onde há liberdade de imaginar o impossível, onde as utopias se realizam. O mesmo pode se dizer de Lina quando elabora exposições como “Mil brinquedos para a criança brasileira” ou “Pinocchio”, a ludicidade e o encantamento estão ali.


O navio é o espaço onde a imaginação acontece, pois, desprovido de um local fixo, deriva também através do tempo. Em "Opisanie Swiata”, livro de Veronica Stigger, o narrador Raul Bopp avista um navio ao longe, com cerca de cinquenta pessoas, todas peladas, e grita: “El Durazno, El Durazno”, em uma alusão ao navio de “Serafim Ponte Grande”, de Oswald de Andrade.


Oswald surge no contexto e corrobora a relação entre um Brasil popular e um Brasil em processo de modernização e espelhamento do estrangeiro, também tratada por Lina. Ainda que ligado à primeira fase do movimento moderno (1920-30), a relação entre ele e Lina Bo Bardi foi retomada em outras exposições como "Lina Bo Bardi: Tupí Or Not Tupí. Brasil, 1946-1992", realizada na Fundación Juan March (Madri, Espanha) em 2018-19. Oswald de Andrade também compõe o círculo de influência de pessoas como Zé Celso e Glauber Rocha, diretor associado ao Cinema Novo, movimento no qual Lina também se embrenha.


Porém, como traduzir uma heterotopia e a ludicidade de um local imaginário em “terra firme” no desenho de um espaço? Ainda que não seja o desenho que constitui uma utopia realizada, como pensá-lo de antemão?


Caminhando em direção à Oswald de Andrade, Beatriz Azevedo nos guia para a resposta. Em seu livro “Palimpsesto Selvagem”, um estudo sobre o Manifesto Antropófago ela escreve:


“A transparência do ‘antigo entrevisto sob o novo’, a desierarquização dessas próprias categorias (o que é o antigo?, o que é novo?), e a ideia implícita de recriação permanente do palimpsesto”.

Palimpsesto: um pergaminho escrito que era raspado para poder conter uma nova escrita, mas que nunca perdia completamente seu texto anterior. É através dos espaços que permitem a visualização de “tempos diversos” que o palimpsesto foi escolhido como mote para o projeto da exposição. Nele contém a sobreposição de pensamentos e o emaranhado das letras. Porém é na lacuna que está a visualização de outro tempo. E que permite, no presente, conter uma escritura futura. Em breve o projeto poderá ser visto aqui.



Codex Nitriensis , volume que contém uma obra de Severo de Antioquia. Um exemplo de palimpsesto.

Assim, o projeto pretende ser como o navio dos que estão despidos e suspensos neste espaço de todos os tempos e que se permitem viver a utopia de imaginar. A exposição porta um discurso em um local emblemático de Lina Bo Bardi. Os trabalhos orbitam a figura da arquiteta, suas contribuições, seus olhares e os temas que a atravessaram. Uma estrangeira que embarcou em uma aventura.

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