Em seu projeto de 1976, Hejduk elabora aquilo que ele chama de “Cemitério das Cinzas do Pensamento”, como uma resposta ao cemitério de Modena projetado por Aldo Rossi em 1971. O projeto, como tantos outros de sua autoria, choca não apenas pela narrativa, mas também pela sua assombrosa presença. Localizado em Veneza, ele contaria com a remodelação de um antigo moinho e fábrica – o “Molino Stucky Building”, um prédio de 1895 –, a construção de extensas paredes e uma ilha artificial para um único residente. Assim Hejduk descreve o projeto:
“O exterior do Molino Stucky Building é pintado de preto. Os interiores do Molino Stucky Building são pintados de branco. As longas, extensas paredes do Cemitério das Cinzas do Pensamento são pretas de um lado e brancas do outro lado. A superfície superior e as laterais das longas paredes estendidas são cinzas. Nessas paredes estão buracos quadrados de trinta centímetros quadrados no nível dos olhos. Dentro de cada um desses buracos de trinta centímetros quadrados é colocado um cubo transparente contendo cinzas. Abaixo de cada buraco na parede tem uma pequena placa de bronze indicando o título, e somente o título, de uma obra, como “Em Busca do Tempo Perdido”, “Os Moedeiros Falsos”, “O Inferno”, “Paraíso Perdido”, “Moby Dick”, etc. Nas paredes interiores do Molino Stucky Building estão pequenas placas com os nomes dos autores das obras: Proust, Gide, Dante, Milton, Melville, etc. No lago, em uma ilha artificial tem uma pequena casa para a habitação de um único indivíduo por um período de tempo limitado. Apenas um indivíduo, por um determinado período de tempo, pode habitar a casa. A nenhum outro será permitido ficar na ilha durante sua ocupação. O indivíduo solitário olha através da lagoa para o Cemitério para as Cinzas do Pensamento.”


Historicamente, o cemitério na cultura ocidental é um local que passou por diversas alterações na sua localização na cidade, relacionado às mudanças na religião cristã de crença na ressureição dos corpos. Segundo Foucault, a dedicação e cuidado dispensado aos restos mortais cresce a partir do momento em que não se crê piamente que o corpo ressuscitaria. Sendo assim, os restos do corpo seriam a única prova de que uma pessoa teria existido. Ainda segundo ele:
O cemitério é certamente um lugar outro, comparativamente aos espaços culturais comuns; é um espaço que está, no entanto, ligado ao conjunto de todas as alocações da cidade ou da sociedade ou do vilarejo, já que cada indivíduo, cada família se vê tendo familiares no cemitério.²
Como os falecidos, os ideias ganham um espaço que comprovam a sua existência no projeto de Hejduk. O cemitério que guarda as cinzas dos pensamentos desloca o posicionamento do acúmulo das ideias, como em um museu, e inverte a tradição de que os pensamentos permanecem apesar da morte de seus autores. Aqui, os restos das ideias são completamente localizáveis e possuem sua lápide. Podendo ser interpretado como uma metáfora para o período de ordenação sistêmica pelo qual a Europa passava, o “Cemitério das Cinzas do Pensamento”, permite a alguém, em um lapso de vislumbre, olhar os jazigos das ideias.
A Itália vivia uma época bastante conturbada devido a uma série de atentados terroristas, conhecida como "Anos de Chumbo". Apesar desse plano de fundo, não fica estabelecido por Hejduk um discurso claro sobre o exato motivo da proposição desses extensos corredores. A exemplo do conto “Casa Tomada”, de Júlio Cortázar, onde os acontecimentos ficam suspensos apesar de existir um contexto social que serviria como canal de interpretação, o mesmo ocorre com este projeto. Mesmo em seus desenhos técnicos, faltam informações práticas que são preenchidas pelas descrições narrativas e também por seus esboços. Os espaços que sobram aguçam a imaginação, e as informações que conseguimos extrair referente à alguma escolhas vêm de entrevistas que Hejduk concedeu a Don Wall, como o propósito das diversas cores da casa da ilha operar pelo contraste ao “monocromatismo” da época.

Todo o projeto é uma heterotopia. A parcela de tempo em que o indivíduo habita a ilha artificial e observa as fileiras de paredes onde estão as cinzas dos pensamentos é um intervalo recortado da realidade, uma abertura abrupta onde a observação pode ser feita somente por uma pessoa, que também não se sabe o porquê de ter recebido um consentimento para tal ocupação momentânea. Há aqui o espaço definido para a solidão, o lugar do desvio é também um lugar privilegiado pela permissão concedida, habitado durante uma parcela de tempo em que se pode olhar para um outro rompimento de tempo, o tempo finito do pensamento.

notas
¹ HEJDUK, John. Mask of Medusa. New York: Rizzoli, 1985, p. 80
² FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: Foucault, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Fonrense Universtiária, p, 419
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