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Um vazio onde a solidão possa habitar

*texto desenvolvido para Grupo Desvios


É noite de sábado e, seguido de um barulho em outro cômodo, me lembro subitamente de um poema de Carlos Drummond de Andrade. “A Bruxa”. Aquela que acomete o indivíduo na calada da noite e se avizinha a cada último ambiente deixado. Não por acaso é a bruxa que surge hoje, nesta cidade, de muitos milhões de habitantes. A bruxa, mulher, suspeita, e que ousa ser só.


Nas ficções, os solitários são representados em seus extremos: ora herói que aguarda seu chamado para romper o autoexílio, ora suspeito que se esconde, corroído por si mesmo. Seja pela busca ou pela fuga, a penitência é uma companheira constante dos solitários.

Na história do mundo, o deserto é o principal destino da penitência. A partida dos primeiros eremitas para o imenso mar de areia seria a prova de que conseguiriam abdicar dos prazeres da carne sugeridos pela vida em sociedade, e que os impossibilitariam de aceder ao reino divino. O deserto se torna, pouco a pouco, um povoado esparso de ascéticos que buscam a plenitude. Ali, a solidão é a ferramenta para uma busca extemporânea, para alcançar o estado em que cessaria o próprio desejo de alcançar. A solidão é impossível na presença do divino e das certezas que ele representa.



Mirage of the desert, 1874. Popular Sciente Monthly, Autor desconhecido


A história seria outra se as miragens tomassem conta dos nossos olhos. Se neste vasto mar despontassem locais oscilantes. Espaços localizáveis apenas aos olhos e inalcançáveis por excelência. De meros fenômenos ópticos a diversas rotas de navios, dispostos a alçar velas e lançar aventuras, cruzando o horizonte sem pousar. E nós, dispostos a embarcar em algum “El Durazno”, nos tornaríamos, enfim, a “humanidade liberada”, sem jamais tocar nossos pés em nenhuma margem novamente. Sem terra firme.


A miragem surge para a humanidade assim como o espelho para o indivíduo. Aqui está a possibilidade de se localizar na ausência, na suspensão do real. O ermo, a miragem, o espelho, o navio. Heterotopias em que a solidão pode acontecer. Não como ferramenta, mas como oportunidade de desestabilizar crenças. O espelho deslocaliza a presença do indivíduo, expõe sua ausência, suas falhas e seus vazios tais como são, sem exigir o preenchimento por algo palpável. O reflexo – que é aquilo que não há – é a potência da imaginação.


Assim, o trajeto para o ermo possível é apresentado para nós em formato de canoa. Longa como um tronco e feita para um. Sem nada dizer, empurrar a canoa e nos lançar no vasto rio, na terceira margem. Esse mesmo espaço da presença e da ausência. O indivíduo liberado das certezas que regem na margem. As condutas, os deveres comunais e as tradições deixadas para trás para encarar a própria construção de si e mergulhar no fluxo contínuo do rio. Ser a própria certeza com a mesma dureza da madeira da canoa, de seus veios, sua idade e ranhuras.


Para aqueles que se soltam do cais encontram na mansidão do rio uma constelação de ausentes. As ilhas aqui não são pedaços de terras, mas sim as diversas canoas. Os náufragos à deriva se aventurando, aglutinando-se e afastando-se. A calmaria da ilha substituída pelo choque incessante da aproximação pela semelhança, pela vontade. E o desejo toma o lugar da necessidade. É assim, portanto, que a solidão não interrompe o coletivo. Nesse instante retorno ao poema:


“Porém a essa hora vazia”, indaga-se Drummond, como descobrir companhia?


Mas por que a procura por companhia se ela já se faz presente? O medo da bruxa é o medo da solidão compulsória, do afastamento físico e de se descobrir só neste quarto, só nesta América. A angústia dessa situação é nítida. A ânsia pelo outro, que irromperia pela porta e saciaria suas urgências é aterrorizante e é, ainda mais, a incapacidade de falar sobre a presença da bruxa:


“Mas se tento comunicar-me, O que há é apenas a noite E uma espantosa solidão”


Porém, é neste vazio dos cômodos e do outro, é nesta ausência de si largadas pelos ambientes, que a solidão existe, e que se faz companhia. É encarar a Bruxa e chamá-la para dentro. Hoje o apartamento não precisa de outrem. A presença que espreitava é substituída pela falta apaziguada e o vazio de estar só encontra seu domicilio. Como finaliza Drummond, ousando exprimir seu grito no meio de um rio:


Essa presença agitada Querendo romper a noite Não é simplesmente a Bruxa. É antes a confidência Exalando-se de um homem.”


E, assim, a noite se aquieta.

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